“…o ecommerce obriga a um investimento substancial antes do retorno. Isso assusta os nossos gestores e empreendedores.”
O isolamento social ditou que se fechassem lojas, empresas, escolas e demais instituições, colocando em marcha um plano de recurso à tecnologia de tal forma massivo que acelerou de anos para apenas dias a implementação do digital quer em comunicações, quer em desenvolvimeno de novas oportunidades de negócio. Um cenário que dinamizou por exemplo a prática do ecommerce que num primeiro momento sobrecarregou os sites de hipermercados e que num segundo tempo levou muitos gestores a repensarem os modelos de negócio. e a procurarem no online a prosperidade financeira e a expansão.
Vera Maia, CEO e fundadora do Tudo Sobre eCommerce, acredita que a crise global e o estado de emergência nacional provocadas pela disseminação do novo coronavírus estão a abrir alas rumo a uma «oportunidade de ouro» para o ecommerce português crescer e multiplicar-se, apontando como certo uma evolução positiva de 30% ao ano.
Em entrevista ao Ntech.news, esta responsável explica como deverá este novo el dourado do comércio evoluir, como podem os gestores actuar e que cuidados devem ter para não defraudar as suas e as expectativas dos clientes.
Ntech.news – Será esta a oportunidade que o ecommerce nacional precisava para se desenvolver?
Vera Maia – Em todas as crises surgiram novas oportunidades de negócio. Depois de 2008 surgiram os negócios mais pequenos, locais e familiares, os projetos individuais de turismo e a consultoria a pequenos negócios. Neste momento, com todas as portas fechadas e apenas as lojas online a terem capacidade de resposta para fazer chegar bens essenciais e não só, não temos dúvidas de que esta é a oportunidade que o ecommerce nacional precisava para ter tempo de crescer e, acima de tudo, tornar-se um hábito no seio das famílias portuguesas. Por outro lado, se acompanharmos as redes sociais e outros canais digitais, vamos compreender o crescente interesse dos portugueses no online: nos últimos anos têm surgido um grande número de novas marcas de moda, calçado e acessórios de menor dimensão , ou seja, sem lojas físicas nem grande distribuição no retalho, geridos por uma ou duas pessoas, mas com um volume de clientes já bastante elevado. As quais despertam não só interesse nacional mas também internacional. Essas são as marcas que vendem quase exclusivamente pelo canal online, seja através das suas lojas online ou por redes sociais. E nesta crise foram apoiadas por todos aqueles que as seguem online, não perdendo as suas vendas e estreitando relações.
Em que dados se baseiam para afirmar que o ecommerce vai começar a crescer 30% ao ano?
Vera Maia – A informação é proveniente dos nossos clientes de consultoria, maioritariamente do setor da moda, moda de criança, calçado e acessórios. São marcas portuguesas e que produzem em Portugal. Temos clientes com faturação na ordem dos 500.000€ até aos 2.000.000€ anuais e são estas as taxas de crescimento que conseguimos visualizar. Com exportação entre os 10% e os 40% da faturação. Por outro lado, a percentagem de vendas de retalho online, a nível mundial, é de 10%, com taxas de crescimento entre os 5% e os 30%, dependendo do mercado. Portugal está ainda bastante atrás dos 50 mil milhões de euros vendidos online em Espanha ou dos 200 mil milhões de libras no UK(dados Ecommerce Europe). Temos um longo caminho a percorrer. E esta é a oportunidade certa.
Para os gestores e empreendedores que se lamentam agora de não terem investido mais cedo, o que recomenda que façam agora?
Vera Maia – Em primeiro lugar, definir a sua estratégia. O ecommerce não será tábua de salvação de uma empresa. Os gestores têm de definir a sua estratégia a longo prazo: desenvolver a loja, com uma equipa que dê resposta às necessidades do cliente e esteja atento às tendências do mercado. O ecommerce apresenta-se como uma oportunidade para estar no local certo à hora certa. Hoje, as procuras nas lojas físicas são substituídas pelo computador. Temos horas para “gastar” e não podemos frequentar shoppings ou outros espaços comerciais. Por exemplo, neste momento multiplicam-se as receitas de pão caseiro. Mas existe um problema: muitas das grandes superfícies já não têm fermento nem farinha. Qual a opção seguinte? Comprar online. Eu própria fiz isso. Agora aguardo que chegue o meu fermento, que comprei em dose superior para armazenar, e não tenho mais que me preocupar em procurar no hipermercado. Por outro lado, precisamos de materiais para cuidar do jardim – já que estamos em casa e não temos quem trate do espaço exterior e até nos dá jeito respirar ar puro. Onde vamos comprar os materiais? Online. Isso foi o que o meu marido fez. Nunca antes ele tinha imaginado que compraria um carrinho de mão online…
Trilhar o caminho para o sucesso
Quais deverão ser os primeiros passos, sabendo-se que há negócios que estão estruturados de raiz para funcionar à margem do online?
Vera Maia – Esse é o primeiro erro quando começamos um negócio online: basta ter a loja e os clientes irão comprar. Infelizmente, isso não é, de todo, verdade. É necessário ter uma loja a funcionar, com produtos, preços e stocks, uma logística e transportes que dê resposta aos pedidos dos clientes e uma estratégia de marketing que faça chegar clientes à loja. Por isso, mais do que uma loja, é necessário pensar num negócio com fluxos financeiros, logísticos e financeiros próprios, e numa equipa que faça a gestão de todo o projeto.
Há cuidados, há regras que devem ser observadas obrigatoriamente, sob pena de colocar em causa todo o investimento. Que cuidados são esses?
Vera Maia – Em primeiro lugar, é importante compreender que o investimento em ecommerce é contínuo e, numa fase inicial, pode ser elevado, devido às necessidades de tecnologia a implementar, equipa a recrutar e ainda, se necessário, o stock a alocar a este novo negócio. É importante referir que este investimento inicial só é recuperado a médio/longo prazo. Um dos erros comuns que vemos ser cometido é a tentativa de reduzir o investimento em tecnologia, sem ter a real noção das necessidades do projeto; o que mais tarde leva a um duplo investimento. Os gestores também devem ter em consideração que é necessário investir em marketing e numa equipa formada para gerir o negócio. Principalmente os custos de marketing podem-se tornar bastante elevados no lançamento da marca/loja online, caso a marca não tenha qualquer notoriedade no mercado. Alocar recursos, financeiros e humanos, é uma das maiores premissas para garantir o sucesso de um projeto de ecommerce. Claro que isto depende dos objetivos do gestor: se pretendem crescer rapidamente e escalar o negócio, terá de fazer um maior investimento. Se quer apenas testar e perceber como funciona o negócio online, basta abrir páginas nas redes sociais e iniciar a “conversa” com os potenciais clientes. Esta estratégia é mais demorada mas serve para fazer os testes iniciais antes de investir no negócio a longo prazo.
Como devem posicionar-se junto do target actual e captar outros públicos, nomeadamente internacionais?
Vera Maia – Esta questão só pode ser respondida com informação concreta sobre os públicos-alvo de cada marca. Dependendo do posicionamento da marca e dos seus potenciais clientes, deve ser desenvolvida uma estratégia que comunique de forma assertiva com cada um deles. Podemos falar em táticas de marketing digital: gestão de redes sociais, publicidade em Facebook, Instagram e Google, táticas de remarketing e email marketing, gestão de influenciadores e até marketing automation. Mas a estratégia – e as táticas – só pode ser implementada depois de conhecermos profundamente o nosso público-alvo. Qualquer estratégia é depois materializada em conteúdos, promovidos através de vários canais.
Para que esta experiência seja positiva há toda uma rede de parceiros (logística e transportes) que tem de estar bem oleada. Existem contratos, SLAs que protejam as lojas?
Vera Maia – Sim, é possível definir “Service Level Agreements” com os parceiros de transportes e logística. É importante termos na nossa “mão” toda a comunicação com o cliente. Podemos ter de intermediar a conversa entre o nosso cliente e os parceiros mas isso garante-nos controlo sobre o serviço prestado e gestão de reclamações por causa desse mesmo serviço. Felizmente, no mercado nacional existem já vários parceiros habituados a esta gestão. O problema é que muitos não estavam preparados para o crescimento do volume de procura dos serviços e existe algum atraso em entregas nacionais e internacionais.
Online Vs offline
“O digital ocupará o lugar do físico.” Esta afirmação tem uma janela temporal até que se concretize?
Vera Maia – Na verdade, será difícil que isto se concretize a 100%. Isto porque o nosso mercado tem bastante retalho tradicional, com shoppings abertos em horários alargados e ao fim-de-semana. Esta mudança total de paradigma só seria possível se o isolamento se mantivesse durante anos e não semanas. Por outro lado, confiamos mais em marcas que conhecemos e com as quais contactamos offline (conseguimos analisar isto pelo número de visitas que um utilizador faz a uma loja online antes de comprar). Acredito sim que alguns negócios verão o online crescer substancialmente, principalmente aqueles para os quais ao contacto em loja física é desnecessário. Compra de livros, materiais de escritório, até material de jardim e de cozinha ou eletrodomésticos, não necessitam de uma grande interação em loja. Por outro lado, moda, calçado e acessórios, que são setores ainda muito procurados offline, podem crescer ainda mais online se a proposta de valor for diferenciada e facilitarem o processo de troca e devolução, por exemplo.
No universo de lojas em Portugal qual é neste momento a fatia que desenvolve só online?
Vera Maia – Não temos acesso a esta informação, por vários motivos: os dados que são transmitidos pelos canais oficiais não estão completos. Existem associações em Portugal que recolhem dados dos seus associados mas não da totalidade dos negócios. Existem ainda muitos negócios que não têm loja online mas vendem por Facebook, Instagram e até pelo OLX. Por este motivo, qualquer dado que possamos dar não vai estar correto. Podemos apenas falar dos nossos clientes e, nesse caso, todos vendem em múltiplos canais, online e offline. Vendem na loja online própria, em marketplaces, em retalhistas e revenda, lojas multimarca, etc. Para se chegar ao nível de uma Amazon ou Farfetch, em que as vendas são exclusivamente online, é necessário um investimento muito superior ao que os nossos gestores estão normalmente habituados e capazes de fazer.
Estimulos ao investimento
Na vossa opinião, qual a % de projectos online que têm efectivamente as características ideais para sobreviver?
Vera Maia – Existem vários fatores que nos demonstram que um negócio online tem possibilidade de sobreviver e crescer: encontra-se num nicho de mercado com volume de procura mundial, vendem produtos que sejam leves, não perecíveis, que não têm estação, que sejam consumíveis ou de compra frequente, entre outros fatores. Claro que os hipermercados vendem uma parte de produtos consumíveis e de procura para consumo imediato. O que não significa que não sejam capazes de crescer online. O problema com a venda online dos hipermercados é a margem e gestão de stocks (este último fator acreditamos que tenha sido o que causou o problema que mencionou). Cada vez que um produto necessita de ser processado – embalado, picado, etc. -, capta uma parte da margem e por esse motivo, grande parte dos negócios de supermercado online, não são rentáveis. Por outro lado, manter stocks alocados apenas ao online, quando o negócio digital representa uma pequena percentagem do negócio global, não se justifica. Desenvolver um projeto de supermercado online envolve muito mais do que ter uma loja e sistemas que gerem os stocks: obriga a fluxos novos, desde os fornecedores até ao cliente e muitos dos negócios não estavam preparados para este novo paradigma. Em momento algum, durante os últimos 10 anos, se verificou um pico semelhante na procura. Para que os hiper/supermercados consigam dar resposta a estas novas necessidades, têm obrigatoriamente de modificar todo o seu modelo de fulfillment e gestão de stocks. O que obriga a um investimento de meses, senão anos, e não de semanas.
Que estímulos faltam no nosso país para que o online vingue com este crescimento desejável/previsto?
Vera Maia – Mais do que estímulos financeiros precisamos de uma mudança de mentalidades. Existem hoje diversos apoios à economia digital, basta analisarmos os projetos de investimento PT2020 e PT2030. Mas o ecommerce obriga a um investimento substancial antes do retorno. Isso assusta os nossos gestores e empreendedores. Obriga ainda a uma revisão profunda dos processos logísticos, gestão e manutenção de stock e fluxos financeiros. Obriga ainda a uma equipa e estratégia de marketing. Temos de compreender que somos um país de produtores e não de marcas. Nas marcas é que vemos o valor acrescentado. Não quer dizer que não somos excelentes no que fazemos, porque somos. Mas temos de mudar a nossa forma de ver e explorar os negócios. A rentabilidade é importante, mas precisa de um investimento substancial que muitos não estão preparados – mentalmente e não financeiramente – para o fazer.
A velha questão do ROI
De onde / de que entidades têm de vir esses estímulos?
Vera Maia – Como mencionei, já existem alguns estímulos para este efeito. No entanto, acredito que irão estagnar, neste momento, para dar lugar à resposta necessária aos problemas causados por esta pandemia. Claro que se fosse possível um apoio direto do estado, com redução de impostos para quem efetuasse investimentos ao nível da transformação digital, isso iria incentivar mais os gestores a focarem os seus negócios nesse sentido.
Quem deve ajudar o comércio nacional a pensar e a fazer esta transformação digital bem feita?
Vera Maia – As associações locais e nacionais devem ter essa responsabilidade, apoiadas pelos organismos do Estado. Existe ainda uma responsabilidade pública, na nossa opinião, e é por isso que investimos tanto tempo no desenvolvimento de conteúdos, partilhados online de forma gratuita no nosso blog em www.tsecommerce.com, para que os empreendedores possam desenvolver os seus negócios de forma autónoma e com menos recursos financeiros.
E com que dinheiro, já que muitos espaços físicos não têm dinheiro para investir? Como se explica o custo benefício e se garante um rápido retorno?
Vera Maia – É sempre difícil quantificar o custo versus o retorno do investimento, isto porque, não existe uma fórmula que rapidamente nos devolva essa informação. Se é detentor de um espaço físico e tem uma fraca capacidade financeira, neste momento, opte por vender em canais como redes sociais, OLX, eBay, Amazon, entre outros. Não necessita de investir numa loja online própria mas terá bastante trabalho manual na resposta a cada solicitação que receba. Começar a experimentar e a perceber o negócio online. Se tem capacidade de investimento e uma base de clientes fidelizada que facilmente compraria online, então invista numa loja e equipa e espere um retorno do investimento a 2 ou 3 anos. Mais uma vez, o ecommerce não é um penso rápido para solucionar o problema de falta de vendas neste momento. É uma nova estratégia que poderá alavancar o crescimento do negócio nos próximos anos.
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