Unidos por um mar de dados

É uma das provas desportivas de elite a nível mundial. A Volvo Ocean Race é a mais antiga regata competitiva em torno do mundo, mas o estatuto não vem só pela idade, vem também pelo grau de exigência que coloca aos seus participantes.
Em barcos com 22 metros de comprimento, equipas de nove pessoas chegam a estar 24 dias em alto mar a lutar contra condições adversas e sempre com a pressão de ser necessário fazer o melhor tempo possível na prova. Em resumo: muito desgaste, poucas horas de sono e atletas sempre com a cabeça focada na corrida.
Lisboa volta a fazer parte do roteiro da Volvo Ocean Race, tendo sido o ponto de chegada para as sete equipas que constituem este campeonato depois de terem partido de Alicante. Mas para uma equipa, a AkzoNobel, esta não foi apenas mais uma etapa como tantas outras.
Esta foi a etapa na qual a equipa holandesa integrou pela primeira vez uma solução tecnológica desenvolvida para otimizar a performance dos seus atletas. É um módulo, ainda em fase de testes, que agrega dados biométricos dos atletas que vão a bordo da embarcação. A ideia é usar depois estes dados para entender melhor a performance dos atletas, sobretudo ao nível do stress, dos níveis de cansaço e também do impacto que toda a prova tem em áreas como a alimentação.
O projeto começou a nascer em 2016 quando a tecnológica alemã SAP soube que um dos seus principais clientes holandeses, a AkzoNobel, iria patrocinar uma equipa na Volvo Ocean Race.
«Falámos primeiro com a AkzoNobel, eles disseram que sim, disseram para falarmos com a equipa e começámos com uma sessão de design thinking com o skipper. E ele disse ‘Na realidade todos estes barcos são idênticos, o que faz a diferença é a tripulação e a sua performance. Se a SAP pudesse desenvolver tecnologias que me ajudassem a tomar melhores decisões e me dessem melhores insights da performance e da recuperação da tripulação, isso seria fantástico’”, recorda o especialista em biometria da SAP, Paul Eringfeld, em entrevista ao Ntech.news.
«A ideia era conectar as pessoas e os barcos uns aos outros, exatamente o espaço no qual queremos estar em termos de iniciativas de Internet das Coisas. Dissemos ‘vamos a isso’».
Por norma as tecnologias de analítica estão associadas à cloud, pois o grande volume de dados recolhidos precisa de máquinas poderosas para que seja extraída informação com sentido e com valor para o utilizador final. Acontece que na prova Volvo Ocean Race os barcos não podem ter esta tipologia de ligações – assim que vão para o mar, contam praticamente apenas com as ferramentas de navegação e com a perícia humana.
Os dados dos atletas são recolhidos através de um smartwatch. Esses dados são depois passados para o módulo que existe no barco e que neste caso é um simples Raspberry Pi. Assim que uma etapa da regata termina, aí sim o módulo faz a comunicação com a cloud para que a agregação de informação possa ser mais vasta e mais rica. Mas o próprio circuito informático interno do barco também permite que o skipper possa fazer uma leitura visual mais simplificada daqueles que são os principais indicadores de performance da sua tripulação sem que seja necessária uma ligação à nuvem.
«De momento estamos focados em conseguir bons dados, limpos e depois vamos subir para os níveis superiores. A partir do ritmo cardíaco podes ver níveis de stress, quando estão a trabalhar e quão duro estão a trabalhar, mas também deduzir os gastos, quantas calorias por dia é que queimaram, quão duro foi aquele dia para eles. Depois também podemos monitorizar o sono e a recuperação, que são dois dos aspetos mais importantes para a tripulação. A partir daí conseguimos construir algo que é tecnologicamente e fisiologicamente mais avançado. As métricas começam a intervir e deixam-nos ver padrões com antecedência», explicou ao Ntech.news o especialista em biometria da AkzoNobel, Ryan West.
Esta recolha de dados também é importante para proteger a saúde dos atletas. Por ser um desporto de elite e de alta competição, ninguém admite estar cansado ou com dificuldades em recuperar energia, pois isso de alguma forma poderia colocar o seu lugar na prova em risco. O próprio corpo pode ser enganador, como explicou Paul Eringfeld.
«[Com a recolha de dados] Pode haver maior objetividade. Até podes dizer que não estás cansado e até sentes que descansaste bem, mas há indicações de que isso não aconteceu, não dormiste e vais ter uma performance inferior».
«Está a fornecer mais informação», acrescentou logo de seguida Ryan West. «A natureza desta corrida não é como noutros desportos, como no futebol, em que podes colocar e tirar pessoas do campo, temos nove pessoas em alto mar a milhares de quilómetros de distância e não há botão de pausa, não há descanso. Eles vão pegar nos dados, vão digeri-los e vão utilizá-los da melhor forma em situações específicas. Às vezes em corridas renhidas ou quanto o tempo está mau, podes não dormir durante 36 horas. Mas depois disso conseguimos ver quem está com maior stress e precisa de um pouco mais de descanso».
O objetivo é mesmo começar a usar os dados gerados de forma preditiva, isto é, criar padrões para antecipar acontecimentos. Por exemplo, dar maior descanso na fase inicial da prova a um determinado atleta, pois por norma é no final das regatas que ele costuma ser mais importante.
Dormir mais uma ou duas horas pode não parecer algo assim tão crítico no desfecho de uma prova que dura oito meses e dá a volta ao mundo, mas a acumulação do cansaço pode vir a ter um impacto negativo a longo termo. E para ter uma ideia, esta é uma competição na qual até um litro de combustível extra é visto como dispensável para tornar a embarcação mais competitiva.
«Ainda estamos na fase do projeto de inovação. Fomos bem sucedidos a recolher dados desde Alicante até Lisboa, em forma de teste e vamos repetir na próxima etapa. Com isto recolhemos dados que nunca tínhamos tido. (…) À medida que ficamos melhor nisso, podemos começar a ver como o ambiente afeta o atleta. Que tipo de meteorologia, que tipo de condução marítima está a causar o maior desgaste no atleta. A partir daí podes preparar preventivamente melhores refeições e coisas como essas», referiu o especialista da AkzoNobel.
«Isto começa de forma muito básica, porque nunca ninguém fez algo como isto, fazer o registo de dados durante oito meses, 24 horas por dia, sete dias por semana», referiu depois o executivo da SAP. «As experiências anteriores dos skippers dizem que podes ganhar a corrida nos últimos dias da prova, mas podes perder a prova se fizeres erros crassos como teres a equipa desgastada e não o teres antecipado. É aqui que podemos fazer uma pequena diferença», acrescentou.
Nesta fase muitos perguntar-se-ão qual o interesse da SAP numa regata. É uma empresa que está acostumada a fazer grandes implementações tecnológicas e neste caso específico estamos a falar de um barco e de uma equipa que no caso da AkzoNobel tem no máximo 30 pessoas.
Além do carácter único da experiência, a empresa sabe que o seu futuro passa justamente por projetos inovadores como este e não apenas pelos grandes contratos.
«[Este projeto] Requer do nosso lado uma mentalidade diferente. Não é apenas a ideia, mas é mudar também as grandes organizações como a SAP a trabalhar com projetos de escala menor e mais ágeis. No final se a SAP quiser, e é o que queremos, fazer parte do mundo IoT, precisamos de fazer centenas de milhares de projetos destes para sobrevivermos e sermos bem sucedidos nos próximos dez anos», salientou Paul Eringfeld.
«Há um ano disse aos meus colegas, vamos usar esta oportunidade para vermos o quão longe vamos. (…) Isto é apenas o início».
Habitue-se, é o futuro
A SAP não é nova nesta área da utilização de dados biométricos para a otimização de performances desportivas. A empresa tem uma parceria já com alguns anos com a seleção nacional alemã de futebol e a verdade é que neste momento os germânicos são os campeões do mundo em título.
Há mais empresas que estão a investir muito em ciência e tecnologia para levar esta otimização quase até ao extremo. Um dos casos mais mediáticos é o da marca norte-americana Nike que está a tentar quebrar a barreira das duas horas de corrida na maratona.
Será este o futuro do desporto, usar a analítica para elevar ao nível máximo o desempenho do ser humano? Tanto Paul Eringfeld como Ryan West estão de acordo: sim, este é o caminho.
«A tecnologia vai ser inseparável daquilo que são os desportos», disse o especialista da tecnológica alemã. «Da perspetiva da SAP posso dizer que não é apenas relativo ao desporto, mas também os objetos e as pessoas vão estar conectados. Os desportos até podem ser um caso extremo, mas pensemos nos bombeiros ou nas pessoas que pilotam aviões, pessoas que têm trabalhos diários muito perigosos ou de grande risco – todos estão interessados no que podem aprender [com os dados]».
O que parece trazer só grandes benefícios, pode ao mesmo tempo representar um grande perigo. Ficar demasiado dependente da tecnologia é sempre um risco, pois a qualquer momento os sistemas podem falhar e toda a estratégia fica comprometida. Foi quando questionámos Ryan West sobre este cenário que vimos a centelha desportiva do norte-americano a acender.
«Podia ser perigoso se apenas dependesses da tecnologia, mas em desportos de elite não vais fazer decisões apenas tendo em conta os sinais cardíacos, as calorias ou quanto dormiste na noite anterior. Vai ser uma componente na tomada de decisão, em desportos desta natureza tão complexa é apenas uma variável que estamos a acrescentar para que possam tomar melhores decisões, mas nunca vais dizer ‘vamos seguir esta rota porque precisamos de dormir’».
Em bom rigor, é este lado humano que torna provas como a Volvo Ocean Race como bastiões do desempenho que um ser humano consegue atingir. «Isto não vai substituir os treinos e as técnicas, mas o que vai fazer é dar melhores insights para tomares melhores decisões. É o futuro do desporto e vais ver isto no futuro da medicina e no futuro de outras áreas».
Ryan usou depois uma expressão curiosa e que acaba por descrever bem esta nova era em que vivemos, uma no qual os dados informáticos querem ser tão importantes para um barco como são o vento e a ondulação do mar. Ryan chama-lhe «o movimento quantificável» e já começou.
Publicado em:
AtualidadePartilhe nas Redes Sociais